Revista Enunciação - v.8, n.1 (2023)

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Dossiê Concepções do humano hoje

 

Se um dia Kant quis sintetizar em uma quarta questão, “O que é o ser humano?”, o sentido de suas três grandes questões (“O que posso saber?”, “O que devo fazer?”, “O que me é permitido esperar”?), o século XX viu a antropologia filosófica perder a ingenuidade da posição de seus problemas. Embora tenha sido um século fecundo para a disciplina (por exemplo, na tradição fenomenológica), foi também a época em que, por diversas razões, se impôs a suspeita sobre a possibilidade de se responder de modo enfático à questão “O que é o humano”. Depois da morte de Deus declarada no século anterior, foi a vez da declaração de morte do homem. Do questionamento teórico do humanismo à desumanização ocorrida na prática, da denúncia do humano como universal ideológico à proposição da identidade interseccional, da crítica ao especismo às aspirações do pós-humano e ao antropoceno como ameaça do fim existencial da espécie: o deflacionamento da pergunta “o que é o humano” e a dessubstancialização do próprio ser humano não interditam, todavia, a disciplina, mas antes a tornam mais relevante. Os desenvolvimentos dos campos do saber cujo objeto é o humano, da antropologia (a ciência social) às neurociências, passando pelos estudos de gênero e raciais, atualizam não apenas a questão sobre o que é o humano, mas também aquela sobre o que ele não é. 

Abrindo nosso dossiê, Maria Cristina Longo Cardoso Dias e Márcia dos Santos Fontes, em “A crítica feminista ao humano universal”, esmiuçam, a partir de pensadoras como Spelman, Saffioti, González e Federici, as implicações ideológicas entre o universal “humano” e a sua parte, o homem, remetendo a formação do conceito de humano ao dualismo hierarquizado entre razão (dita masculina) e corpo (dito feminino).

Em “Castoriadis e a significação antropológica e política da tragédia”, Sérgio Dela-Sávia mostra como a tragédia grega e o imaginário nela consubstanciado inspiram o francês Cornelius Castoriadis em sua concepção antropológica. Dela-Sávia mostra como a consciência da desmesura do homem expressa na tragédia implica na necessidade democrática de impor-se uma lei, instituindo-se a si próprio como anthropos.

Em seguida, Bruno Daemon Barbosa reavalia o embate entre Foucault e Derrida ao redor dos argumentos do primeiro sobre o lugar da filosofia de Descartes na história da loucura. Em “Foucault leitor de Descartes e a crítica de Derrida”, trata-se de verificar se oargumento do cogito é representativo do silenciamento da loucura e da desrazão que desponta na modernidade, ou depende, ao contrário de uma consideração filosófica que as inclui e com elas dialoga.

Paulo Eduardo Bodziak Junior, em “Reflexões sobre medo e esperança em no prólogo de A condição humana”, mostra como Hannah Arendt pensa nossas formas de temporalização a partir daquele par de afetos. Pelo medo e pela esperança, antecipamos de algum modo nosso futuro. As consequências políticas desse fato na época inquieta em que Arendt redige seu livro são o objeto das reflexões de Bodziak.

Em “Questions and problems left by Kant to think about the contemporary crisis of human rationality”, Lucas Ribeiro Vollet passa em revista uma série de questões que considera terem sido deixadas em aberto na epistemologia kantiana, equacionadas pelo autor, mais amplamente, a certas aporias de nosso tempo e a uma crise diagnosticada na racionalidade humana em geral.

Com recurso a Bakhtin e Lacan, Maria Rubia Rodrigues Freitas, em seu “A enformação do sujeito pela palavra amorosa do outro”, destaca as implicações da palavra de amorosa na constituição do sujeito pela linguagem, particularmente na primeira infância. Pensando o amor a partir da dialética maussiana do dom e do contradom, que o projeta para além da noção de desejo, Freitas conclui que “o amor (...) vive dentro da palavra falada”.

Repassando os nove fragmentos de Heráclito onde ocorre o polissêmico termo λόγος e o estado da arte sobre seu significado naqueles contextos, Rodrigo Figueroa Corona, em seu “Heráclito y el logos”, demonstra a complexidade da tradução e da compreensão do vocabulário do Obscuro de Éfeso, legado a toda a tradição filosófica ocidental.

Fechando o dossiê, “Logidion: anatomie d’um “petit discours”, de Marco Donato, examina, por sua vez, as ocorrências da expressão-título, diminutivo de lógos, em Aristófanes, Isócrates e Pseudo-Platão. Donato conclui que a expressão designa, na época clássica grega e no período helenístico, a argumentação capciosa da erística.

Desejamos boa leitura!

editores do número: Luiz Philipe de Caux e Edson Peixoto de Resende Filho

Publicado: 2023-11-11